sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A idade não tem me trazido sabedoria, leveza de espírito ou algo assim, a maturidade tão aclamada, aquela que ingenuamente ansiava como forma de equacionar os fantasmas que arrasto pela vida a fora é uma imensa falácia – como só a vida sabe ser. Tenho deixado a luz acesa, não por causa dos fantasmas, é a mim que temo, eu, minha inimiga mais feroz, eu a detentora da caixa de pandora – entupida de auto sabotagens.
Ando desbocada, mas isso também se coloca na conta da idade, acumulei impropérios lançados contra mim a vida inteira, agora ando eivada de palavrões, as tais palavras inadequadas – sem vulgaridades, palavrões podem sim soar libertadores, mesmo que durem um átimo de segundo, não se constituindo portanto em alívio.
Pensei, e isso eu faço como só as vacas conseguem fazê-lo, remoendo até não restar mais nada. Mas dizia, pensei em sair por aí batendo portas, como cobrador investido do direito de apontar o dedo na cara do bocado de gente que dispôs do melhor que pude dar no tempo que ainda tinha como ofertar – sujeitos que acolhi com ouvidos, ombros e ar, fora as coisas práticas para sobreviver, se fosse só um dia para ficar um cervejinha para relaxar, se fosse alguns meses a casa e a vida, se fosse de vez em quando uma paciência que não tenho nem pra mim. Resolvi deixar para lá, gratidão deve ser coisa sentida, não cobrada, das minhas decepções só restam a capacidade de não esperar gratidão de quem tem memória curta!

Ando tropeçando na minha sombra, não tenho mais tapetes para jogar em cima dos dejetos de um ser em frangalhos que a cada investida da vida resta mais só, e muito mais triste, esse negócio de fazer terapia libera a língua e os dedos, e nem pornográfico é...talvez - se ela me dissesse que não faz mal, que tenho escolhas que independem dos outros, que o mundo não é sujo e triste, que pessoas boas até existem – talvez assim eu me convença, e peça gentilmente as portas desse porão em que me meti, daqui só consigo ver o mundo pelos olhos tristes desse eu sem mim...

Anne Damásio

domingo, 21 de setembro de 2014

Dos dias...


Quando eu era adolescente gostava dos sábados - nenhum motivo concreto, creio eu, apenas a mania nervosa que adolescentes desenvolvem de buscar coincidências num amontoado de faltas.
Houve um tempo em que ansiava pela chegada da sexta como suponho que ansiaria por cerveja no deserto – considerando a saciedade que adviria do encontro com um oásis, e a libertação óbvia da lucidez, quem precisa dela afinal?
No início da doença todos os desarranjos orgânicos advindos da bendita, aconteciam aos domingos, meu corpo gritava pela fuga, temia as estradas, precisava ficar longe de humanos, eles ferem e chegam a matar. Então alguns remédios depois - no tempo que minha terapeuta me ajudava a caminhar sem quedas frequentes – domingo era só mais um dia, com direito a descanso.
Veio a vida em enxurrada com direito a recaídas, mais frequentes que as de Cristo a caminho da cruz – sem querer dar uma de herege e me comparar com qualquer ser divino, justo eu que sou a mais mundana de todas, se elencadas as características não aceitas socialmente estaria mais para Maria Madalena sexualmente desviante. E com a enxurrada foi de uma vez, a terapeuta, alguns sentidos, outros significados, algumas poucas certezas, a possibilidade de beber – considerando que domingo pela manhã é super adequado – sem morrer com um ataque severo da esofagite, uma certa paz que arrefecia meu desejo de outros mundos, tanto quanto me assustava pela delicadeza com que tingia meus dias – sempre achei que ela fosse branca – mais vejam vocês era tão colorida, um colorido desbotado, que não choca, mas acalma, pela possibilidade de existir com todas as cores reunidas. Alguns amigos também desceram na enxurrada, os que não entendiam que doenças da alma demoram a passar, aqueles que cobravam de mim um jeito de sorrir que havia perdido, outros que já estavam em processo – porque aprenderam a me ver com olhos dos outros que lhes acompanhava. Teve também os amigos que a doença aproximou, aqueles que não cobravam minha presença, ou uma leveza de existir que nunca tive, que não cobravam as longas distâncias que a rotina impõe, ou que usamos como desculpa para a fuga. Teve também aquela leva que se aproximou quando as vacas eram gordas – no momento, de gorda só sobrou eu e as dívidas, aprendi a rir de ambas.

Quanto aos domingos, aprendi que nenhum dia é santo, e todos podem ser. Que a programação do domingo – das tevês abertas, porque não sou tão cult assim, e assisto novelas e seriados, tô viciada em império - é uma ofensa a qualquer cristão que consiga fazer uma sinapse com dois neurônios. Que domingo bom é aquele que temos vontade de sair da cama, como no domingo passado, quando fui visitar minha irmã preferida – é bom se saber amada. Que minha vontade de permanecer atada a cama e longe de mim independe do dia. Que eu queria muito significar meus dias, minha vida, mas a essa altura do campeonato, levanto para fechar a janela e dormir mais um pouco, dizem que ‘o sono salva, ou adia.’

Anne Damásio


sábado, 20 de setembro de 2014

É sempre assim quando me descubro só. Me vejo numa mesa cheia de ‘amigos’, ou naquelas festas fastidiosas de comemoração de alguma data insignificante para a maioria das pessoas, em termos do sentido que carrega, inscritas nos calendários pessoais como momento para abrandar as animosidades de toda uma vida. As pessoas riem, longe de saber de fato o que seria confraternizar. As pessoas riem, vazias de sentir e só mostrar.
Parte de um mundo onde as instituições são mais importantes que os laços, provavelmente me sentirei sem lugar, e observarei os outros fingirem ocupar um lugar que não é deles – ao longo do ano falarão, apontarão falhas, arranjarão formas de culpar alguém, mas relaxe, sempre tem uma data comemorativa no calendário, resta saber se já inventaram o dia da hipocrisia.
Você volta para sua concha, afasta a todos com seus ‘melindres’, mesmo os que te fazem sentir bem – quase ninguém consegue, e mesmo assim você os afasta. Eles confundem incapacidade de adaptação, inapetência para socializar com maldade, e como falam, porque não sabem o que é sentir-se em carne viva. As vezes que você tentou ser um deles, foi engraçado e patético, você deixou todos os braços e pernas a mostra, não sabia o que fazer com as mãos, falava demais – pensava demais, observava demais, e via o que não podia, e se desculpava por eles, seguidas vezes. Dessas noites que a boa educação nos impõe, sobra a necessidade de beber para suportar – de preferência beber muito, até não sobrar consciência.

Você finge não se importar, mas artes cênicas não é seu forte, o álcool trará a tona seu eu real, que será retirado da sala com desculpas relativas ao horário. Dentro de você será sempre cedo demais, cedo demais para descer ao mundo.

Anne Damásio


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Conforto-me com histórias outras, de raspão, de través...Evito o toque – não por medo do contágio, mas pelo pavor das tantas entregas em vão...Preservo o desvario como dom, e medida preventiva contra a realidade, fui direto para esse estágio, pulando propositadamente a busca absurdamente utópica da felicidade.
Estou bem, relaxa, a tristeza como a melancolia andam entrelaçadas a mim, trago ambas pela mão, o que não me torna cronicamente infeliz – realista com toques de pessimismo medido e pesado com as doses de vida cotidiana e demais atrocidades. Admito não saber se quando no reino do terrivelmente vil, do incoerente, conseguirei seguir vivendo, mesmo com roupas que evitem o contágio, luvas, máscaras e toda a sorte de medidas de prevenção
Esse contato com os ‘do mal’, fez um rasgo nos meus pulsos, e depositam dia sim, outro não, veneno sobre a cicatriz – sempre prestes a abrir-se. Eles estendem as mãos vazias para meu corpo fragmentado, sorriem plasticamente e dizem, tranquilize-se senhora, nós sempre estaremos aqui. Depositam as malas por sobre os meus pés, e com os sorrisos congelados me olham e afirmam: não adianta criar desvãos contra o que conseguimos lançar dentro. As tuas pontes ilusórias, sempre seguem em direção ao outro.

Assina aqui – sem ler, se faz favor – e começa a procurar a felicidade a qualquer custo, você é só mais uma idiota, ansiando pelo que lhe falta, e desejando em seguida qualquer outro produto em liquidação no mundo.

Anne Damásio



segunda-feira, 14 de abril de 2014

Do que a vida levou...


Venho através desta, solicitar ressarcimento referente a muitas coisas que me foram usurpadas, coisas e situações que, diga-se de passagem, não estava preparada para perder. Levaram trinta e oito anos da minha existência, tendo em vista que estando nos trinta e nove ainda não os perdi. Levaram inclusive a minha ilusão juvenil de que crescer deveria ser muito bom, fantasma que me perseguiu por toda a minha adolescência de rebelde com causas distantes, ou sem elas. Começou exatamente aí toda a série de questões existências que me obsediariam por um longo tempo – e que as vezes temo, se estenderão enquanto matéria/espectro, para além de mim...
Levaram também coisas bobas, mas que traziam uma certa tranquilidade aos dias, como a possibilidade de me empanturrar de qualquer comida hiper-calórica sem me preocupar em explodir.
Levaram a capacidade de utilizar canetas bic em cadernos de pauta, sem que a letra pareça saída de uma receita médica, tendo em vista que a não constância da escrita prejudica a legibilidade;
Levaram a beleza que era abrir uma carta, em seu lugar colocaram e-mails que não me dão o menor tesão de abri-los, o que impede a minha existência virtual;

Levaram minha crença de que nunca teria filhos, mas essa é boa, no lugar dessa crença colocaram em minha vida uma criaturinha tão do bem, que não imaginá-la como parte e parcela de mim torna inviável atravessar os dias;
Levaram minha ignorância, minha despreocupação referente as coisas do mundo, minha vontade de viver para sempre, e em seu lugar trouxeram uma preocupação excessiva com o outro, e uma vontade de partir que as vezes torna a necessidade de atravessar os dias sem me deixar esmagar por eles, inviável;
Levaram minha saúde e me jogaram uma quantidade infinda de entulhos emocionais não resolvidos, que voltam como fantasmas reivindicando morada em mim;
Levaram a coragem de ser imprudente, de atravessar madrugadas sem pensar na ressaca do dia seguinte, reduzindo minhas farras a momentos ínfimos num cotidiano absorvente;

O que mais doeu foi levarem a minha vó, eu não estava preparada para perdê-la, eu não estava preparada para não mais tê-la ao meu redor, talvez eu nunca ficasse pronta para isso, mas me dói saber que ela tinha medo de partir, me dói saber que ela era tão do bem a ponto de esquecer de si para viver o outro em toda a sua plenitude, e essa perda eu não perdôo;
Ainda não estou pronta para falar do que ganhei, fica para outro dia, antes de acabar os dias...talvez pela minha paixão dramaticamente visceral de reclamar da humanidade e da minha inscrição na mesma à revelia de mim. Anne Damásio

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Comecei a pensar, e essa ideia ficava dando voltas na minha cabeça, uma única ideia sem par...era assim, se eu tivesse um cérebro adequado, desses que administram todos os neurônios que nele vivem com uma maestria que só os equilibrados devem ter, fico viajando numa produção de serotonina adequada, uma vida saudável e toda a sorte de ações entediantes...ops, achar que ser normal é entediante seria uma forma de desvio? E se eu tivesse esse tal cérebro hiper-adestrado, será que eu acharia que é possível viver?
Bom, considerando que hoje em dia eu sou meu cérebro, ou ele sou eu dependendo do ponto de vista, ou do lugar que me observo, então percebo que sou um imenso fracasso ambulante, serotonina zero, lítio no sangue quase inexistente, acho que todos os hormônios e demais mecanismos orgânicos que respondem pela felicidade (surreal isso né? Atribuir felicidade a hormônios...)então, acho que o deus que me produziu(considerando que foi isso que me passaram no colégio de freiras, acho que eles não gostaram muito da produção, e esqueceram de derramar as dádivas hormonais em mim, que teimo em ser assim, um tantinho infeliz.

Mas esses mesmos deuses devem ter produzido um bocado desses humanos infelizes, então tiveram que recorrer ao diabo, e eis que surge a indústria farmacêutica, minha mais fiel amiga desde o primeiro surto, milhões de medicações circulando aqui por dentro, mensageiros químicos de diversas cores circulando de um lado para o outro numa confraternização química divertidíssima...alguns luvox(s), uns carbolitium(s), o velho clonazepam(e eis que a cabeça consegue se equilibrar nesse pescoço por sobre o corpo...a questão porém, e que os remédios que ‘curaram’ a cabeça provocaram efeitos incontroláveis no corpo, de novo os hospitais, porém sem a ala psiquiátrica, e as injeções para manter-nos atados a esse lugar de normalidade. Agora, só os remédios dos humanos normais, na fila da próxima doença, esperando um intervalinho para se divertir. Anne Damásio

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Escrevendo-angústias...

Eu me sinto aquém do que poderia ser, apesar de não saber o que seria estando satisfeita com o que sou...talvez assim me sinta em função das missões protocolares e das cobranças. Ensinar e aprender me torna completa, me mantém viva e com uma necessidade boa de continuar.
Como diria Caio F. talvez a resposta para a minha inquietude esteja em escrever, talvez a escrita seja a resposta de tudo o que persigo. Mas não pode ser qualquer coisa, não pode ser produção em massa, dessas que facilitam a acumulação de pontos no currículo, mas não ampliam a minha existência, não me tornam melhor, não são construídas a partir de uma vivência que tenha um sentido para além da obrigação. Eu quero sangrar pelos dedos e sorrir com isso, quero vomitar o que está contido nessa cabeça de pensar-angústias, traduzido-as para fugir do vazio. Anne Damásio