sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Do não vivido...



É tão mais fácil vislumbrar o não-vivido  do que efetivar os desastres, observar o abismo e não cair neles, me manter segura nessa zona de conforto em que se constitui as rotinas fastidiosamente repetidas. Tão mais tranqüilo observá-la de longe, visível o que lhe constitui, o resto, o que fica nas sombras é aquela parte de você inventada por mim, motivo julgado certo para te querer. De quem eu falo? De todos os desejos reprimidos, de todas as figuras idealizadas, de todas as vontades que calei...não com arrependimento, mas com uma certa dose de melancolia nostálgica pela impossibilidade de experimentar desses desejos apenas o começo, mantendo-os assim na ordem dos delírios que idealizamos por não vivê-los, naquela lógica do poeta de que amor eterno é apenas aquele que não vivemos! Anne Damásio

Fotografia: Djoe - Devinart

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

quantos eus em mim....


Não compreendia como era me ser, uma miríade de annes em mim, corporalmente impossível ser multidão e me conter...ser vários seres numa só alma, confusa, infinda. Esses eus (co)habitavam em eterno desconforto, num minuto a dor era dilacerante, no outro risível. Naquele dia ela era tudo que havia, no outro a desconhecia...Indo assim do amor ao desespero de não amar ninguém, da eternidade a inexistência plena de continuidade, me sabia doendo constantemente. Ao longo dos anos o que restava era um leve cinismo como matéria de sobrevivência, porque conciliar esses eus em milhões que me habitavam, tendia a embotar parte do que um deles poderia sentir, talvez a melhor parte, quem cinicamente saberia?
Anne Damásio

Imagem: Audrey Kawasaki

DESABAFO...



Indignação, dilaceramentos contidos na pele que prestes a explodir infla-se de uma dor aguda contra a mediocridade de viver. Os outros, aqueles que atenta e constantemente ignoro, por não querer saber de suas vidas, esses outros me invadem, vomitam sobre mim essas certezas insanas quanto a minha necessidade tão mais insana de viver sem ferir ninguém...me alertam para a velha pergunta, aquela que persegue pessoas assim ‘sem juízo’, que escolhe sua própria vida ao invés da vida dos outros, que assume essas escolhas e se sabe autêntica. Ah, a pergunta? A cabeça me pesa, as decepções se acumulam a porta, decidida fecho as janelas, remodelo a alma, visito os livros de etiqueta e auto ajuda esquecidos displicentemente na parte fútil da estante...Outra eu, 36 anos e tentativas socialmente determinadas de contenção sendo diligentemente adotadas em nome da moral e dos bons costumes, finalmente, olhares de aprovação por ter aprendido a fingir, ando levemente por entre os seres autorizados a viver, sento de pernas fechadas, femininamente adestrada, uma senhora adequada. Até quando duraria o insano delírio de adequação perguntava rascante aquela que vivia em mim, aquela que era eu, gritava por dentro, arranhava a pele recém maquiada, as roupas que escondiam a verdade tão perseguida...
Então o avesso volta à tona, o avesso que sempre foi meu lado certo, pele/tatuagens, corpo/desejo pelo mesmo, cara a tapa, estou de volta, trinta e seis anos de pura insanidade, pela não aceitação, pela tentativa de ser coerente com anos de teorizações, essa sou eu, quer me desafiar, se conheça primeiro!


domingo, 21 de agosto de 2011

...


Aquela menina esquiva, escorregadia mesmo, sempre soubera como se fazer invisível. Quando a observava da janela defronte ao prédio em que ela morava me assustava com seus passinhos leves, a mania de brincar sozinha e o estranho muxoxo que  fazia quando as pessoas se afastavam, como se misantropicamente entediada. Ficava imaginando por horas a fio como ela seria quando envelhecesse, será que no decorrer dos dias se esfumaçaria definitivamente, quem sabe se sua personalidade não estaria mais para a liquefação do que para o esfumaçamento? Nunca me mudei daquele prédio, tinha uma espécie qualquer de compulsão pela permanência, mas a menina se fora com a mãe, as tralhas todas do apartamento defronte ao prédio, e eu a observar com a caneca na mão. De longe ela me lançou um olhar de relance, quase que cortante, como se dissesse que me vira a observar por todos esses anos, temi que me confundisse com um pervertido qualquer, mas o último olhar de esguelha, e o sorriso levemente acintoso me fez perceber um certo prazer de ser vista, como se voyeur as avessas...Gostaria de dizer que nunca mais a vi, mas a curiosidade que me marcava como fogo, quem saberá se pela vida comezinha que  levava, me fez buscar informações acerca das duas. Encontrando-as, encontrei uma outra forma de continuar vivendo, não a minha vida, como deveria, mas a vida daquela menina...
Segui assim, por entre vidas, durante toda essa existência, e agora com quase 80 anos, a vejo de mãos dadas com um rapaz de aparência limitada, um tanto atabalhoado, me recuso a acreditar que ela terminará assim, mediocremente voltada para as mesmas coisas domésticas que eu, como boa dona de casa adestrada repeti durante anos, a rotina fastidiosa, os cafés acompanhada daquele que eu teoricamente escolhera, minha incapacidade de parir, o desleixo daquele ser que habitava comigo um apartamento ínfimo. Então, como num rompante, para viver finalmente para além da vida que quisera minha, me aproximo dos dois, sabendo que uma senhora respeitosa, de cabelos grisalhos presos comedidamente no alto da cabeça seria bem recebida, no máximo educadamente descartada. Ela me olha com aquele mesmo olhar de esguelha, e me convida a sentar com o mesmo muxoxo que vi seguidas vezes, quando entediada se escondia por trás de si...direta, me pergunta, com uma voz gutural – que me soou estranha num primeiro momento -  a que vim, disfarço, tento levantar, mas a curiosidade aliada a tensão me faz permanecer. Então, finalmente afirmo segura: me procurei esses anos todos, e você como uma sombra fugia de mim, não sei se poderei te colar a minha alma novamente, mas vim cobrar o que é meu de direito. Ela apenas sorri e se desfaz líquida, na minha frente.
Anne Damásio
Fotografia retirada da internet...desconheço a autoria.