domingo, 21 de agosto de 2011

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Aquela menina esquiva, escorregadia mesmo, sempre soubera como se fazer invisível. Quando a observava da janela defronte ao prédio em que ela morava me assustava com seus passinhos leves, a mania de brincar sozinha e o estranho muxoxo que  fazia quando as pessoas se afastavam, como se misantropicamente entediada. Ficava imaginando por horas a fio como ela seria quando envelhecesse, será que no decorrer dos dias se esfumaçaria definitivamente, quem sabe se sua personalidade não estaria mais para a liquefação do que para o esfumaçamento? Nunca me mudei daquele prédio, tinha uma espécie qualquer de compulsão pela permanência, mas a menina se fora com a mãe, as tralhas todas do apartamento defronte ao prédio, e eu a observar com a caneca na mão. De longe ela me lançou um olhar de relance, quase que cortante, como se dissesse que me vira a observar por todos esses anos, temi que me confundisse com um pervertido qualquer, mas o último olhar de esguelha, e o sorriso levemente acintoso me fez perceber um certo prazer de ser vista, como se voyeur as avessas...Gostaria de dizer que nunca mais a vi, mas a curiosidade que me marcava como fogo, quem saberá se pela vida comezinha que  levava, me fez buscar informações acerca das duas. Encontrando-as, encontrei uma outra forma de continuar vivendo, não a minha vida, como deveria, mas a vida daquela menina...
Segui assim, por entre vidas, durante toda essa existência, e agora com quase 80 anos, a vejo de mãos dadas com um rapaz de aparência limitada, um tanto atabalhoado, me recuso a acreditar que ela terminará assim, mediocremente voltada para as mesmas coisas domésticas que eu, como boa dona de casa adestrada repeti durante anos, a rotina fastidiosa, os cafés acompanhada daquele que eu teoricamente escolhera, minha incapacidade de parir, o desleixo daquele ser que habitava comigo um apartamento ínfimo. Então, como num rompante, para viver finalmente para além da vida que quisera minha, me aproximo dos dois, sabendo que uma senhora respeitosa, de cabelos grisalhos presos comedidamente no alto da cabeça seria bem recebida, no máximo educadamente descartada. Ela me olha com aquele mesmo olhar de esguelha, e me convida a sentar com o mesmo muxoxo que vi seguidas vezes, quando entediada se escondia por trás de si...direta, me pergunta, com uma voz gutural – que me soou estranha num primeiro momento -  a que vim, disfarço, tento levantar, mas a curiosidade aliada a tensão me faz permanecer. Então, finalmente afirmo segura: me procurei esses anos todos, e você como uma sombra fugia de mim, não sei se poderei te colar a minha alma novamente, mas vim cobrar o que é meu de direito. Ela apenas sorri e se desfaz líquida, na minha frente.
Anne Damásio
Fotografia retirada da internet...desconheço a autoria.

2 comentários:

  1. Volta com brilhantismo, conservando sua característica de narrativa profunda que tanto gosto. Escreva, continue... eu voltarei aqui.
    Beijos

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  2. ah, e ... tenho saudades...das palavras, escritas, e faladas. Das trocas e epifanias.

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