Oficialmente
órfã de psicóloga. Minha terapeuta na nossa última sessão me pergunta, fazendo
afirmações sempre distantes de todos os clichês(coisa que eu adoro, esse jeito
de elaborar sentenças motivadoras sem que as mesmas pareçam recém-saídas de um
livro de auto-ajuda, além da velha pergunta que me acompanha desde maio: isso
faz sentido para você?) após uma breve apresentação de mim a mim mesma, o que
eu mudaria a partir de uma rememoração desse ano que passou. Bom, considerando
que eu tenho horror a essa época do ano e definitivamente não consigo reelaborá-la,
por mais que eu tente, entrei na onda de refletir sobre o ano que breve
findará, e descobri: que odeio essa doença mas que terei de domá-la se pretendo
continuar viva, que ela fará incursões regulares por um tempo considerável,
dando as caras uma vez ou outra para me lembrar que eu existo para além dela,
mas que ela existe comigo, e que tem sido uma mestra bem cruel, mas
necessária(e nesse ponto tenho que confessar que ainda não sei qual a sua ‘serventia’).
Aprendi que
as pessoas que amo foram essenciais para me ajudar a sair do fundo do poço -
apesar de me manter pendurada por uma corda fraquinha ao meio caminho entre o
escuro do fundo do poço e aquelas luzes ofuscantes e confusas da parte de cima.
Minha companheira Dani Negro, com toda a paciência que lhe é característica, Minha
filha Beatriz Vieira com essa leveza que tornam possíveis os meus dias, Minha
mãe que passou horas ouvindo minhas insanidades intercaladas pelos choros
convulsivos, e pelo otimismo que eu definitivamente não herdei, Tassi, minha
irmã que eu amo e que me ajudava a levantar. Aprendi que certos prazeres
efêmeros trazem sempre uma carta extensa de cobranças depois.
Aprendi que
transtornos mentais são feios e escuros, e que as pessoas tendem a evita-los,
dessa feita além das pessoas que elenco acima me sobrou uma única amiga, que se
preocupou verdadeiramente comigo, as pessoas a quem ajudei de verdade em
momentos diversos simplesmente esqueceram da minha existência, as visitas que
antes eram ponto pacífico em minha vida, foram escasseando, as desculpas eram
ótimos, você deve estar tão mal, então resolvi não aparecer, o interessante é
que a constatação era elaborada num vazio, Teve também sujeitos mais diretos em
sua deslealdade, sujeitos que não deram nenhuma desculpa, e também não apareceram,
sujeitos que tiveram a doença e que eu ajudei a cuidar(no sentido literal).
Decorrente disso entendemos que só devemos ter a nosso lado quem se faz
presente, e essa presença nunca deve ser mediada por oportunismos de quaisquer
natureza, a presença tem que ser por gosto e vontade, você me entende?
Aprendi que
o meu corpo não me pertence, porque os remédios que curam a cabeça deixam-no inapto
para viver no sentido estético. Aprendi que o tour pelos médicos quando
iniciado reproduz aqueles efeito dominó, e toda a sorte de desmantelos
orgânicos irão surgir.
Aprendi que
existem médicos de verdade, com uma capacidade única de me compreender para
além dos transtornos, uma fusão pouco comum entre competência técnica e
humanização no melhore sentido do termo, fato visível na sua postura impecável.
Resolvi também
uma série de questões fúteis, que vou aprender a me maquiar porque não pagarei
mais uma exorbitância para um troço que escorrerá pelo ralo no final da noite,
e essa foi a maior promessa em termos fúteis que faço desde a adolescência.
Aprendi que
eu não sei dançar, mas também não quero aprender. Que não sei sorrir sem
vontade, e que sorriso sem vontade deveria ser punido com obesidade no rosto,
queria ver se ainda existiria tanta gente falsa no mundo. Aprendi que ser dona
de um gato não basta, por isso temos duas novas integrantes nesse clã tão do
bem. Aprendi que ainda vou aprender um
bocado de coisas desde que eu me permita, desde que o ano mude, desde que a
vida leve de arrasto tudo que nos leva para trás. Aprendi que continuarei sendo
assim sem jeito até enquanto aguentar pensar, até o dia que eu aprenda a
sonhar, até o dia que o outro não se constitua em obstáculo mas em mão que
ampara para caminhar junto. Anne Damásio
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