segunda-feira, 22 de julho de 2013

Carta para minha vó!




Oitenta e seis anos, e eu teimava em acreditar que Deus seria gentil em nos conceder sua presença por mais uns doze anos, confiando numa lógica sem lógica de que chegarias aos noventa e oito(mesma idade que seu pai faleceu...dele guardo só um lembrança longe de um senhor magro de andar encurvado e muito sério, como se o mundo fosse demais para ele, e sempre é, não é mesmo?) Já de você eu não esqueço, lembro de uma vez em que pegava algo na geladeira, aquela mesma que por tanto tempo ficou na casa de um dos seus filhos, porque era assim que o mundo funcionava para você, primeiro os outros e nunca você, e então olhando para mim soltas a máxima: Meu Deus, toda riscada, ainda pretende fazer mais desses desenhos(você se referia as tatuagens, eu ri...aquele era seu jeito de dizer que amava). Sabe o liquidificador que você me deu quando nem você tinha, e eu começava a montar uma casa que levaria nas costas até encontrar um lugar definitivo para viver, ele ainda está aqui comigo, já troquei duas vezes o copo, mas não consigo me desfazer dele, porque tenho pavor de esquecer as coisas que me ligam a você, tenho pavor de esquecer a sua voz, tenho pavor de pensar que uma pessoa que se doava até o limite do esquecimento foi embora daqui...minha filha nasceu no dia do seu aniversário, essa era minha homenagem para você, e agora que comemoraremos dezessete anos de existência dessa pessoa incrível que eu gestei e pari, sinto uma falta ensandecida de você aqui, como naquele outro aniversário. Essa semana tentei fazer aquele arroz com carne, porque dani estava doente, e você dizia que “dava sustância”, não consegui, sentei no chão da cozinha e chorei, por você não estar aqui, por eu não poder te ligar para me dizer como fazer, por eu não ter feito um livro com todas as receitas que eu adorava...foram tantos eus mencionados agora, e me ocorre que sou tão egoísta querendo sua permanência eternamente, e esse desejo de permanência não foi suficiente para assegurar que sua vida não chegasse ao fim. O que passava na tua cabeça tão branquinha ultimamente vó? Como era viver naquela casa pequena com um quintal, em que as vozes das casas ao lado se faziam ouvir mais altas que a sua? Tenho tanta saudade de pegar na sua mão, queria tanto ouvir a história do sapato trocado, ou a do vestido verde que você usou para passar na frente de vovô. Porque te roubaram o teu mundo? Porque não te deixaram ser? Mas o que você seria? Você tinha essa estranha mania de viver para os outros esquecendo-se de si. Me ocorre agora uma frase da carta de Saramago para a avó, ele conseguiu condensar o que você sentia, quando teve a certeza que iria partir: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!" Anne Damásio

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